Flávio Gordon vai se estabelecendo como um dos melhores intelectuais da nova geração. Neste artigo primoroso ele mostra as raízes iluministas dos regimes totalitários e, de passagem, dá uma cipoada histórica no jactancioso e boçal psolista togado infiltrado no STF, o Barroso.
Thursday, December 3, 2020
Um Resplandecente Barrão na Cabeça do Barroso.
Em outubro deste ano, ao comentar sobre a possibilidade de tornar obrigatória a vacina contra o coronavírus, o ministro do STF Luís Roberto Barroso declarou que, apesar de não poder antecipar o voto (mas já antecipando), se considera “uma pessoa adepta ao Iluminismo, ou seja, à razão, à ciência, ao humanismo e progresso social, além da separação entre igreja e Estado”. De seu ponto de vista, portanto, parece haver alguma relação necessária entre “Iluminismo” e a imposição forçada aos cidadãos, via aparato repressor do Estado, de uma vacina ainda em fase experimental. E a essa violência estatal contra direitos individuais elementares Barroso chama de “progresso social”.
Em maio, o ministro já havia sugerido que o Brasil precisava de “um choque de iluminismo”, de modo que o enfrentamento da presente pandemia fosse baseado na “razão” e na “ciência”. No mês seguinte, estigmatizou como membros de supostos “guetos pré-iluministas” pessoas que protestavam contra o ativismo judicial e os abusos de autoridade cometidos pela corte – a exemplo do famigerado “inquérito do fim do mundo”.
Mas foi em fevereiro de 2018 – antes, portanto, dessas manifestações mais prosaicas – que Barroso formulou de maneira mais direta sua concepção de iluminismo jurídico, cuja influência sobre a prática do magistrado foi explicitada. Naquela ocasião, respondendo às duras críticas que um professor de Direito Constitucional endereçara ao STF, o ministro publicou na Ilustríssima da Folha de S. Paulo um artigo em que afirmava: “O papel iluminista [da corte] deve ser exercido com grande parcimônia e autocontenção, em conjunturas nas quais é preciso empurrar a história.. Em alguns momentos cruciais do processo civilizatório, a razão humanista precisa impor-se sobre o senso comum majoritário (...) A abolição da escravatura ou a proteção de mulheres, judeus, negros, homossexuais, deficientes e minorias em geral foram conquistas que nem sempre puderam ser feitas pelo processo político majoritário. É preciso que um órgão não eletivo ajude a dar o salto histórico necessário”.
Qualquer um que tenha realmente estudado o movimento político-cultural historicamente conhecido como Iluminismo percebe de imediato que a concepção de Barroso é pueril, simplória e provinciana, típica de quem só travou contato com o tema nos bancos escolares, quando se nos apresentavam uma versão em fábula, à la Star Wars, segundo a qual, antes das luzes da razão setecentista, a humanidade vivera séculos envolta nas trevas da ignorância medieval. É sempre impressionante – embora não surpreendente, dado o estado geral da formação intelectual das elites brasileiras – ver homens feitos reproduzindo, sem corar, uma tal fantasia. Como escreve o filósofo Eric Voegelin em A Crise e o Apocalipse do Homem, oitavo volume de sua História das Ideias Políticas: “Ao fim do século 19, a alegada escuridão da Idade Média tornara-se o sintoma pelo qual o semieducado podia ser diagnosticado; e, se qualquer pessoa iluminada quisesse fazer piada sobre a escolástica, a piada voltava-se contra essa mesma pessoa”.
Resta claro que, para além dessa mitologia infanto-juvenil, que repete à guisa de cabotinismo, Barroso não tem a mais mínima ideia do que foi o Iluminismo, e muito menos das diferenças significativas entre as versões nacionais – francesa, britânica, germânica ou americana – do movimento. Embora autoproclamado discípulo de Kant (filósofo que também leu mal, como já demonstrei em outra ocasião), não é o Iluminismo alemão (Aufklärung) – e muito menos o britânico e o americano – que dá forma às suas ideiazinhas prontas. Não, o ministro que tinha ideias (tal qual a fada da história) é mesmo um adepto semiconsciente do badalado Iluminismo francês, e traz na própria persona pública os principais traços dessa vertente: o elitismo, o abstracionismo, o cientificismo (a ciência transformada em ideologia política) e a fundamentação filosófica do totalitarismo.
Totalitarismo, sim, pois, apesar da ilusão comum (da qual, certamente, Barroso partilha) de que o Iluminismo francês foi a origem dos direitos humanos, das liberdades civis e da igualdade, a verdade é que ele inspirou, direta ou indiretamente, os movimentos políticos de massa mais violentos, desumanos e totalitários dos séculos seguintes, incluindo o comunismo e o nazifascismo, ambos entusiastas da “ciência”, do “progresso social” e da proposta de “empurrar a história”, mitos em nome dos quais perpetraram os crimes mais bárbaros contra a humanidade.
Sei que, ao associar Iluminismo e nazifascismo, arrisco-me a ferir as suscetibilidades da parcela mais ignorante e sentimental da nossa intelligentsia progressista, que, por um raciocínio puramente afetivo, tende a se ver como herdeira do legado iluminista e, naturalmente, a manter o máximo de distância possível das trevas nazifascistas. Em contraste com as pretensas luzes da razão, estas teriam sido a irrupção reacionária do obscurantismo e da irracionalidade pré-iluministas.
Trata-se, de fato, de uma bela fábula, de um acalanto para adultos. E quem o diz não sou eu, mas ninguém menos que Stanley Payne, um dos maiores estudiosos contemporâneos do fascismo. No clássico A History of Fascism (1914-1945), o autor escreve: “As ideias fascistas são frequentemente caracterizadas como opostas ao Iluminismo e às ‘ideias de 1789’, quando, de fato, são um subproduto direto de aspectos do Iluminismo, derivados especificamente dos conceitos modernos, seculares e prometeicos do século 18”.
Payne põe ênfase no secularismo inerente ao projeto fascista, herança óbvia e direta do anticlericalismo do Iluminismo francês. Nas palavras do autor: “Fundamental para o fascismo era o esforço de criar uma nova ‘religião civil’ do movimento e de sua estrutura enquanto estado (...) Essa religião civil deveria substituir as estruturas prévias de crença e relegar a religião sobrenatural a um papel secundário, senão mesmo inexistente. Essa orientação tem sido por vezes chamada de religião política, mas, embora houvesse casos específicos de fascistas religiosos ou cristãos, o fascismo pressupunha basicamente um campo de referência pós-cristão, pós-religioso, secular e imanente”.
Sabe-se que a ideia de “religião civil” remete a Rousseau, que assim intitulou o último capítulo de Do Contrato Social (1762). Nele, o pensador genebrino dá prosseguimento à empreitada que, na teoria política moderna, começa com a tentativa de Hobbes de instituir uma teologia civil neopagã, abolindo com isso a distinção agostiniana entre política e religião, uma vez que o reino de Deus seria subsumido no reino de César. Daí que, a exemplo de muitos de seus descendentes intelectuais, Rousseau desprezasse o cristianismo, tido por ele como uma religião “contrária ao espírito social” e, portanto, inapta a cumprir o papel de “religião civil” do moderno Estado francês.
Na religião civil rousseauniana, a “vontade geral” (volonté générale) substituía a divindade como fonte de todo poder soberano. Mais do que vontade de uma maioria, a vontade geral era concebida como entidade superior, indivisível e infalível. Um poder absoluto e transcendente ao corpo social. Como escreveu Albert Camus em O Homem Revoltado, de 1951: “A vontade geral é, em primeiro lugar, a expressão da razão universal, que é categórica. Nasceu o novo Deus”.
Obedecendo à “vontade geral”, e tal qual um Deus encarnado, o Estado passaria a dispor do poder sobre a vida humana, reduzida, portanto, a mera concessão estatal. Os princípios do coletivismo rousseauniano – pioneiro das religiões políticas modernas – são claramente enunciados em Do Contrato Social: “É conveniente ao Estado que cada cidadão possua uma religião que o faça amar os seus deveres; todavia, os dogmas dessa religião só interessam ao Estado e a seus membros enquanto se relacionam com a moral e os deveres para com outrem daqueles que a professam... Há, pois, uma profissão de fé puramente civil cujos artigos compete ao soberano fixar, não precisamente como dogmas de religião, mas como sentimentos de sociabilidade, sem os quais é impossível ser bom cidadão ou súdito fiel. Conquanto não se possa obrigar ninguém a crer, pode-se banir do Estado quem nele não acreditar; pode-se bani-lo, não como ímpio, mas como antissocial, incapaz de amar sinceramente as leis, a justiça, e de imolar à necessidade a vida e o dever. E se, depois de haver reconhecido publicamente esses mesmos dogmas, alguém se comporta como se os não aceitasse, que seja punido de morte, pois cometeu o maior dos crimes: ter mentido perante as leis”.
Posto que fortemente associada ao nome de Rousseau, a noção de “vontade geral” já havia sido elaborada por Diderot no verbete sobre direito natural da Enciclopédia, a um esboço do qual o primeiro tivera acesso. As formulações de Diderot marcam claramente a distinção entre a nova religião civil iluminista e a antiga religião francesa, o cristianismo. Enquanto este lidava com a relação da alma individual com a Eternidade, aquela sacralizava a espécie humana em detrimento do indivíduo, característica comum aos futuros regimes totalitários que inspirou. Escreve Diderot no referido verbete: “As vontades particulares são suspeitas; podem ser boas ou más. Mas a vontade geral é sempre boa: jamais se equivocou, jamais se equivocará... Quem quer que medite atentamente sobre isso ficará convencido de que: 1. o homem que escuta apenas a sua vontade particular é o inimigo da espécie humana; 2. a vontade geral é, dentro de cada indivíduo, um ato de entendimento, que raciocina no silêncio das paixões, e que o homem pode exigir de seu semelhante; 3. a consideração da vontade geral da espécie, e do comum desejo, é a regra de conduta relativa de particular para particular dentro da mesma sociedade”.
Sem colocar tanta ênfase na razão – essa a sua notória diferença em relação aos enciclopedistas –, Rousseau concordava que a moralidade humana fosse essencialmente pública. Em lugar da consciência individual como sede do juízo moral, tanto ele quanto Diderot elevavam a vontade geral ao estatuto de fonte absoluta desse juízo. Nesse sentido, davam prosseguimento às tentativas de Maquiavel e Hobbes de circunscrever a moralidade humana ao domínio imanente da política. Se, para os filósofos absolutistas, o Príncipe e o Leviatã representavam o critério absoluto para a proclamação do bem e do mal, para os iluministas esse papel cabia à vontade geral. Se, para Maquiavel e Hobbes, o pecado mortal era a guerra civil – tida por um adoecimento do corpo político –, para Diderot e Rousseau era a desobediência civil, a sublevação da vontade individual contra a vontade geral. “Se, depois de haver reconhecido publicamente esses dogmas, alguém se comporta como se os não aceitasse”, diz Rousseau, “que seja punido de morte, pois cometeu o maior dos crimes”. A vontade geral é coercitiva. Seu poder não tem limites.
O coletivismo protofascista rousseauniano também é evidenciado na novela Emílio, ou Da Educação (1762), na qual o personagem-título é instruído por seu tutor a exercer as virtudes sociais não em relação a indivíduos particulares, mas para com a “espécie” e o “conjunto da humanidade”. Escreve Rousseau nessa obra: “Para impedir que a compaixão degenere em fraqueza, é preciso generalizá-la, estendê-la a todo o gênero humano. Deve-se, portanto, e por amor a nós mesmos, ter compaixão para com a nossa espécie mais do que para com o nosso próximo”. Como se nota, não poderia haver inversão mais simétrica da caridade cristã.
Segundo a historiadora Gertrude Himmelfarb, a despeito de suas desavenças, Rousseau e os philosophes adotavam um mesmo modus operandi: a tendência a generalizar as virtudes, e a sobrepor o “conjunto da humanidade” ao indivíduo, a “espécie” ao próximo. Para os gurus ideológicos do ministro Barroso, o “bem comum dos homens” era mais do que a simples soma dos bens dos homens individuais. E, sobretudo, como sugere Himmelfarb, não se confundia em absoluto com o bem dos homens comuns. Assim como no nosso iluminista de Vassouras, a característica mais ressaltada dos iluministas originais era um retumbante e inolvidável elitismo.
No Emílio, por exemplo, não há qualquer menção ao homem comum, pertencente à parcela social que Voltaire costumava chamar de la canaille (“o populacho”). O protagonista era de origem nobre, e sua educação estava a cargo de um preceptor particular. Já o homem pobre não carecia ser educado, pois, segundo Rousseau, sua própria condição miserável induzia-o a uma educação compulsória. Ademais, ao falar sobre educação pública – como no verbete sobre economia da Enciclopédia –, Rousseau não tinha em mente o ensino tradicional da matemática, ciências e literatura, mas a disciplina moral e social que o Estado deveria impor às crianças e aos jovens: “Não se deve abandonar às luzes e preconceitos dos pais a educação de seus filhos, pois ela importa ao Estado mais que aos pais. O Estado permanece, e a família perece” – uma afirmação que Barroso decerto subscreveria.
Também em Voltaire e Diderot o elitismo era visceral. Quando o primeiro dizia que “todo homem sensato e honrado” deveria nutrir horror pelo cristianismo, não pensava nas pessoas comuns. Aos olhos de Voltaire e companheiros, estas não podiam ser sensatas nem honradas, pois que demasiado ignorantes para tanto. Na apresentação da Enciclopédia, obra tida como instrumento para a construção de uma era filosófica e racional, Diderot deixava claro que dela não faria parte a massa das pessoas comuns. “A massa genérica de homens não foi feita para promover, e sequer compreender, essa marcha progressiva do espírito humano”, escreveu em O Sobrinho de Rameau (1805). E, no verbete “Multidão” da Enciclopédia, foi ainda mais explícito: “Desconfie do julgamento da multidão em matéria de raciocínio e filosofia; sua voz é a da malícia, da tolice, da desumanidade, da irracionalidade e do preconceito... A multidão é ignorante e confusa... Desconfie de sua moral; ela não é capaz de produzir ações fortes e generosas”.
Para Diderot, a população comum era “imbecil” (imbécile) em termos de religião. Enquanto, de modo geral, a superstição nacional parecia recuar, esse progresso dificilmente chegaria até “o populacho” (la canaille). O “povo” (le peuple) era demasiado “idiota, bestial, miserável e ocupado” para iluminar a si próprio. “A quantidade de canaille mantém-se sempre mais ou menos estável”. Daí que o enciclopedista acreditasse que a multidão precisaria sempre de uma religião como o cristianismo, supostamente repleta de rituais e fábulas infantis.
Segundo essa perspectiva, as luzes da razão eram restritas a um pequeno grupo, uma “igreja invisível” (como o chamava Diderot) cujos membros detinham uma gnose libertadora. Concordando com o amigo, Voltaire dizia que l’Infâme (ou seja, a Igreja Católica) não fora feita para os “homens respeitáveis”. Destinava-se, ao contrário, à la canaille. “Jamais tivemos a pretensão de levar as luzes a sapateiros e serviçais” – dizia o castelão de Ferney –, “esse é um trabalho para os apóstolos”. De novo, uma afirmação que, do alto de sua extemporânea húbris iluminista, Barroso subscreveria com gosto.
Todas essas características do Iluminismo, e sobretudo o seu cientificismo, bem como a tendência à sacralização do Estado e à criação de uma religião civil (ou política), foram responsáveis por gestar alguns dos maiores morticínios da história contemporânea, a começar pelo Terror jacobino (assumidamente inspirado na ideia rousseuniana de “virtude” pública). Como escreve o filósofo político John Gray: “O problema com os mitos seculares é o de serem frequentemente mais danosos que os antigos. No cristianismo tradicional, o impulso apocalíptico era controlado pelo insight de que os seres humanos eram inerentemente falhos. Nas religiões seculares que surgiram desde então, esse insight foi perdido. O resultado foi uma forma de tirania inédita na história, cujos vastos crimes são cometidos em nome do paraíso na Terra”.
Gray descreve o cientificismo iluminista como motor dos horrores do século 20: “O papel do pensamento humanista em moldar os piores regimes do século passado é facilmente demonstrável, mas frequentemente negligenciado, ou negado, por aqueles que costumam vociferar sobre os crimes da religião. No entanto, os genocídios do século 20 não foram perpetrados por alguma versão tardia da Inquisição espanhola. Foram perpetrados por regimes ateístas a serviço das ideias iluministas de progresso. Stalin e Mao não acreditavam no pecado original. Mesmo Hitler, que desprezava os valores iluministas da igualdade e da liberdade, partilhava da fé iluminista na criação de um mundo novo pela vontade humana. Cada um desses tiranos imaginou que a condição humana pudesse ser transformada pelo uso da ciência”.
Mais uma vez, a junção de Hitler e Iluminismo numa mesma sentença pode chocar os semiletrados. Para os estudiosos, contudo, trata-se de uma obviedade. Estudiosos como o próprio Gray, que, em outra obra, também afirma: “Os regimes comunistas foram estabelecidos em busca de um ideal utópico cujas origens restam no coração do Iluminismo. E, embora o fato seja bem menos reconhecido, os nazistas também eram, em alguma medida, filhos do Iluminismo”. Como o historiador Lewis Namier, que escreve em Vanished Supremacies (1958): “Hitler e o Terceiro Reich foram a terrível e incongruente consumação de uma era que, como nenhuma outra, acreditou no progresso e esteve certa da sua aquisição”. Ou como Voegelin, que, em Hitler e os Alemães, mostra como o cientificismo religioso de Ernst Haeckel ajudou a moldar o espírito nacional-socialista.
De acordo com o filósofo alemão, Hitler acreditava piamente no poder salvífico da ciência. Em certa ocasião, quando planejava um grande observatório e planetário na cidade de Linz (Áustria), o líder nazista explicou o projeto numa linguagem tipicamente haeckeliana (e não menos iluminista): “Milhares de turistas farão uma peregrinação ali, aos domingos. Terão acesso à grandeza do nosso universo. O frontão triangular terá este mote: ‘Os céus proclamam a glória da eternidade’. Será nossa maneira de dar aos homens um espírito religioso, de ensinar-lhes a humildade – mas sem sacerdotes. Para Ptolomeu, a Terra era o centro do mundo. Isso mudou com Copérnico. Hoje sabemos que nosso sistema solar é apenas um sistema solar entre outros muitos. O que poderíamos fazer melhor do que permitir ao maior número possível de pessoas ficar a par dessas maravilhas?... Ponde um pequeno telescópio numa vila e destruireis um mundo de superstições” (citado por Alan Bullock em Hitler: A Study in Tyranny).
Barroso também não crê no pecado original. Mas acredita que a condição humana pode ser transformada pelo uso da “ciência” – essa entidade mística da qual se acha representante. Adepto retardatário das “ideias iluministas de progresso”, Barroso também acha que a “ciência” pode destruir um mundo de superstições, e que a voz de la canaille – ou, como ele prefere, dos “guetos pré-iluministas” (e a ressonância da palavra gueto é aí demasiado emblemática, remetendo também aos “grupos humanos tísicos” que Marx e Engels queriam aniquilar com o seu “progresso”) – é a voz da malícia, da tolice, da desumanidade, da irracionalidade e do preconceito. E, por fim, imagina, como Diderot, pertencer a uma “igreja invisível”, apartada da ralé. Daí que, movido por essa fé secular nas deusas “razão” e “ciência”, convicto de encarnar a “vontade geral” universal, e permanentemente excitado por uma autoimagem distorcida e grandiloquente, o ministro iluminista não hesite em ignorar o texto constitucional ou atropelar a democracia representativa – “com grande parcimônia e autocontenção”, é claro – para “dar o salto histórico necessário”, uma espécie de versão barrosiana do “Grande Salto Para a Frente” de Mao Tsé-tung. E, assim, empurrando-nos para onde acredita ser a “frente”, e a exemplo de todos os progressistas que o antecederam, é bem mais provável que o ministro que tinha ideias nos leve para baixo, rumo ao tártaro da tirania.
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