Artigo na Gazeta do Povo
No Brasil de hoje, qualquer sugestão de conexão entre as grandes fortunas do capitalismo ocidental e o comunismo decerto faria recair sobre o autor de tal excentricidade a pecha de “teórico da conspiração”. A quantidade de literatura existente sobre essa suposta teoria da conspiração é, contudo, virtualmente inabarcável. Eu mesmo, apesar de me dedicar ao tema há bastante tempo, creio não dominar nem 1% dela. Recorrendo a uma parte dessa bibliografia, escrevi recentemente uma série de sete artigos para o jornal Gazeta do Povo com o título “Globalismo e comunismo”. O que pretendo fazer aqui é retomar alguns temas ali abordados, mas incluir tópicos colaterais, que alargam a perspectiva do fenômeno.
Quem quer que venha a abordar esse assunto (e, de maneira geral, qualquer coisa relativa à análise de política internacional) terá inevitavelmente de lidar, antes de tudo, com um sério inconveniente: a persistência de alguns vícios de raciocínio adquiridos desde o ensino fundamental. Como sabemos, a formação básica no Brasil é bastante deficiente em termos gerais, e particularmente em história, sociologia e política, disciplinas muito contaminadas ideologicamente. Quem entra em contato com elas apenas durante o período escolar – e depois, seja por uma questão de especialização profissional ou por falta de interesse, nunca mais volta a se dedicar a elas, assimilando as informações relativas apenas passivamente (via grande imprensa, por exemplo) – acaba com um conhecimento precário, se não mesmo inteiramente fantasioso, do que realmente se passa no mundo.
Dentre aqueles vícios de raciocínio adquiridos, um dos piores é a tendência a adotar uma interpretação meramente enciclopédica, dicotômica e a-histórica de fenômenos como o capitalismo e o socialismo. Segundo essa visão estereotipada, capitalistas e socialistas seriam inimigos quintessenciais, como se a descrição enciclopédica desses termos pudesse ser transposta imediata e inequivocamente para a realidade histórica e a prática política.
Com base nesse vício de raciocínio, por exemplo, uma prestigiada jornalista brasileira chegou a dizer não acreditar na existência de uma esquerda no espectro político norte-americano, porque, afinal de contas, os EUA são “o berço” ou “a meca” do capitalismo. Trata-se, por óbvio, de um raciocínio infantil, uma peça de humor involuntário. Humor que, todavia, logo se desfaz quanto notamos que essa é uma concepção extremamente comum no debate público brasileiro. Longe de excepcional, a opinião da referida jornalista é prototípica. Na mídia nacional, trata-se de um senso comum consagrado o esquematismo mental segundo o qual se o socialismo é de esquerda, então, evidentemente, o capitalismo só pode ser de direita.
Mas se, no Brasil de hoje, essa é a opinião média entre os assim chamados “formadores de opinião” – ou, antes, papagueadores de opiniões cuja origem sequer conhecem bem –, fora de Pindorama já se sabe há bastante tempo que, na realidade concreta, as coisas se passem de maneira muito distinta do que proclamam as definições dos dicionários e enciclopédias. Convido o leitor a recuar mais de um século no tempo e contemplar, por exemplo, esta charge de um autor chamado Robert Minor, publicada no jornal americano St. Louis Post-Dispatch em 1911:
Charge de Robert Minor, St. Louis Post-Dispatch (1911)
Charge de Robert Minor, St. Louis Post-Dispatch (1911)
Além de badalado cartunista da época, Minor era também militante comunista – alguém, portanto, com uma visão interna da questão. A charge em tela retrata Karl Marx chegando a Wall Street, levando debaixo do braço um livro intitulado Socialismo, e sendo efusivamente recebido por figuras importantes das finanças e da política: John D. Rockefeller, J. P. Morgan, George Perkins e Theodore Roosevelt. Logo, a sugestão de que socialistas e capitalistas pudessem ser bem menos hostis entre si do que aparentam não é nenhuma excentricidade de teóricos da conspiração contemporâneos, mas algo relativamente bem estabelecido, a ponto de sair sob forma de charge, um modo de comunicação eminentemente sintético, num dos jornais de maior circulação no começo do século 20.
Àquela altura, com efeito, muitos intelectuais já o estavam notando. Intelectuais como o romancista britânico H. G. Wells, quem, cerca de uma década após a charge de Minor, escreveu o seguinte no livro Russia in the Shadows (1920): “O grande negócio não é, de forma alguma, antipático ao comunismo. Quanto mais o grande negócio cresce, mais se aproxima do coletivismo”.
Constata-se a pertinência da afirmação em diversos momentos da história recente. Na década de 1970, por exemplo, ninguém menos que David Rockefeller, regressando de uma viagem à China de Mao Tsé-Tung, publicou no The New York Times um artigo altamente elogioso ao líder chinês (para o leitor saber que isso de grandes capitalistas puxando o saco de ditadores comunistas chineses não é de hoje). O que mais lhe chamou atenção na ditadura comunista foi aquilo que definiu como um “senso de harmonia nacional” vigente no gigante asiático. Encantou-se também com a habilidade comunista de produzir uma administração centralizada e eficiente. Segundo Rockefeller, a revolução incutira na população “um senso moral elevado” e “uma comunhão de propósitos”.
A sugestão de que socialistas e capitalistas pudessem ser bem menos hostis entre si do que aparentam não é nenhuma excentricidade de teóricos da conspiração contemporâneos, mas algo relativamente bem estabelecido
Cabe lembrar ademais que, já na década de 1950, a fundação de Rockefeller, juntamente com a Fundação Ford e a Fundação Carnegie, entre outras, foram alvo de investigação por parte do Congresso americano, investigação a cargo de uma comissão montada especialmente para destrinchar a ajuda prestada por essas fundações ao comunismo e o financiamento de agendas marxistas-leninistas dentro dos Estados Unidos. O evento ficou conhecido como “Comissão Reece” a partir do nome do congressista Brazilla Carroll Reece, que a copresidiu (sobre o tema, recomenda-se a leitura de Fundações: o seu poder e a sua influência, de René Albert Wormser, advogado de Nova York integrante da comissão).
Em 21 de dezembro de 1954, o jornalista americano John P. O’Donnell escreveu em sua coluna no jornal Daily News que a Comissão Reece tinha a “tarefa quase impossível” de contar “aos contribuintes que o incrível era, de fato, a verdade”. “E o incrível”, continuava O’Donnell, “era que as enormes fortunas acumuladas por gigantes da indústria, como John D. Rockefeller, Andrew Carnegie e Henry Ford, estavam sendo usadas para destruir ou desacreditar o sistema da livre empresa que lhes deu origem”.
Há explicação teórica bastante razoável para o laço aparentemente paradoxal entre comunistas e arquicapitalistas, uma vez que ambos sonham, no fundo, com o controle monopolístico da sociedade
Apesar das muitas evidências históricas a respeito da simbiose entre o grande capital e o projeto socialista, o assunto continua sendo varrido para baixo do tapete, justamente por contrariar a concepção política do senso comum semiletrado. Como dissemos, o que se aprende já no ensino fundamental – lição que explica a fala da jornalista sobre a inexistência da esquerda nos EUA – é que comunistas e capitalistas ocupam polos radicalmente opostos na realidade política. Daí que, nesse espectro dogmático e idealizado, qualquer aliança entre eles soa naturalmente como impossível.
Mas, mesmo desconsiderando, por ora, os fatos concretos que desmentem aquele dogmatismo, há explicação teórica bastante razoável para o laço aparentemente paradoxal entre comunistas e arquicapitalistas, uma vez que ambos sonham, no fundo, com o controle monopolístico da sociedade. Se, no começo, capitalistas como J. P. Morgan, John D. Rockefeller e Henry Ford tinham em mente apenas um monopólio de ordem econômica (sobre a atividade industrial, por exemplo), logo perceberam que o meio mais fácil de o conquistar era mergulhar na política. A estratégia foi confessada por Frederic C. Howe, político e homem de negócios americano. Em 1906, Howe publicou Confissões de um Monopolista, no qual se lê: “Essas são as regras dos grandes negócios; elas substituíram os ensinamentos dos nossos pais e podem ser resumidas a uma única máxima: arranje um monopólio, deixe a sociedade trabalhar para você e lembre-se de que o melhor negócio de todos é a política”.
Em Wall Street and the Bolshevik Revolution, o economista Anthony Sutton mostra como alguns dos maiores financistas norte-americanos ajudaram a financiar a Revolução Russa de 1917, chegando a sustentar lideranças revolucionárias importantes. Foi com o dinheiro do “inimigo de classe”, por exemplo, que Trotsky se manteve em Nova York durante certo período de tempo, pouco antes de voltar à Rússia para ajudar no processo revolucionário. Sutton escreve que, apesar de essa relação entre socialistas e grandes capitalistas ter sido reiteradamente ocultada ou negada em termos teóricos, nota-se que, na realidade histórica, sempre ocorreu em benefício de ambos. Seguiremos daí na semana que vem.
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